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Dossiê Música Entretelas
Dossiê: Música entretelas
Organizador: Jhonatan Mata
Inserida num contexto de indústria do audiovisual, a música é um poderoso elemento de fixação da cultura, de delimitação de momentos históricos, conforme ressalta Valente (2003/2022) ao tratar da canção que já tem seu feitio pensado para a utilização na mídia. Assim, percebemos nesses espaços diálogos e tensões com as telas- da TV, do cinema e de um cenário contemporâneo multitelas, centrado nas plataformas digitais. Desse modo, hibridizam-se e “universalizam-se” os modos de difusão e repertórios, ao passo que agoniza o sentido de território calcado na exclusividade da geopolítica. A representação visual daquilo que “nasce” essencialmente sonoro negocia- com públicos e com a cultura midiática- as imagens e imaginários de artistas, obras e modos de fruição.
Mais que isso, faz fervilhar gêneros e formatos musicais, mas também televisivos, nos moldes do que propõe Jost (2015) ao anunciar a passagem de uma caracterização de modo de enunciação, para uma caracterização de mundo, onde “diferentes interpretações de gênero são um problema judicial, econômico e comunicacional”.
Remixando grandes produções e artistas independentes e do mainstream, o compartilhamento online de material altera os perfis de quem produz e de quem consome música e vídeo. E oferece tanto a possibilidade de uma representatividade de artistas e gêneros mais plurais como também a utilização de rotulagens regionais como mero verniz mercadológico . A “música com imagem”, consolidada internacionalmente após a criação da MTV, em 1981 e reforçada no Brasil com a chegada da MTV Brasil com o delay de quase uma década (1990), dá sinais, a partir do videoclipe, de que o produto é essencial para a construção das imagens dos artistas e divulgação de seus trabalhos. Mesmo sendo o acesso flexível e liberto de horário fixo de exibição uma das grandes razões de popularidade do streaming, lançamentos de canções e clipes são anunciados e aguardados com dias de antecedência, por meio de cronômetros, indicando em tela, a contagem do tempo restante para a exibição inaugural de material. Os álbuns visuais, pululam, apresentando narrativas visuais em sequência, da primeira à última faixa das canções.
Em paralelo, ressaltamos os dados ofertados por Garret (2020) para o site TechTudo, ao apontar que os serviços de streaming de música foram responsáveis por quase 80% de todo o faturamento da indústria em 2019, movimentando 8,8 bilhões de dólares. Já a Netflix, provedora global de filmes e séries de televisão via streaming, foi responsável, no ano de 2018, por 15% de todo o tráfego de Internet do planeta. Nesse contexto, o videoclipe, híbrido em essência, ao englobar os apelos de vídeo e música em telas, desponta como potencial ingressante do universo do “mainstreaming”, expressão frequentemente encontrada nos atuais relatórios de consumo de audiovisual.
Para além do videoclipe, as narrativas curtas de plataformas como o TikTok reconstroem a semântica e mesmo o tempo de duração das canções. Em outra frente, séries ofertadas no streaming fazem canções de outras décadas voltarem ao topo das paradas e mesmo concorrerem com produções contemporâneas em premiações do “universo” audiovisual. É o caso de faixas como “Running Up That Hill” de Kate Bush, datada de 1985 e que foi indicada ao American Music Awards (2022), na categoria Música de Rock Favorita graças ao sucesso da série de TV Stranger Things. Ou de “Long long time”(1970), de Linda Ronstadt que executada no terceiro episódio da série “The last of us”(2023) fez a música crescer 4900% em streams no Soptify.
Ao observar as relações entre imagem e música, Machado (1997, 130) nos direciona para a existência perene de “obras limítrofes”. Casos dos produtos concebidos esteticamente como “filmes sonoros”, que vão de 2001: uma odisseia no espaço(Stanley Kubrick, 1968) cuja introdução é feita de vários minutos de música, passando por Carmen (Godard, 1983) e mesmo as chanchadas da Atlântida, para culminar em tendências recentes, em que trilhas sonoras específicas para os filmes são substituídas por músicas já gravadas e de grande aceitação popular. Para Machado (1997, 35) o próprio “cinema mudo” nunca foi mudo, já que a reprodução das imagens contava com a companhia do som produzido por pianistas, cantores e até orquestras, expostos nas salas de projeção ou atrás das telas.
A vontade de uma instância enunciadora sempre existiu e hoje, pode ser percebida em produtos batizados como oficial visualizer ou lyric video, que antecedem a própria disponibilização do videoclipe por meio do streaming. E que situam, antecipadamente, a audiência na proposta audiovisual a ser ofertada. Assim, a gravação de discos-hoje retomada-e a difusão da música no rádio e na TV passam a alterar profundamente o conceito de performance. Ou melhor, nos recolocam numa espécie de “máquina do tempo” para compreender o presente e o futuro. Um retorno às experiências audiovisuais performáticas menos chanceladas que o momento mítico em que Lumière exibe as primeiras imagens animadas no Grand Café de Paris. Somos “teletransportados” ao século XIX, quando a música e a representação do corpo que a reproduzia exigiam que toda a performance musical se desse “ao vivo”. No século XXI, e em plena “era do streaming”, revisitamos a inquietude de Thomas Edison e de seu fonógrafo, bem como seu desejo de combinar imagens e sons, por meio de registro e reprodução simultâneos.
Desse modo, o conceito de “entretelas” para nosso novo dossiê foi elaborado a partir de suas evocações metafóricas, mas também em seu uso prático no setor de confecção – seja de vestuário, seja de música ou de vídeo. Localizado entre o forro e o exterior do tecido, o material tem por objetivo principal estruturá-lo. Em perspectiva semelhante, acolheremos propostas voltadas para as relações entre música e múltiplas telas: de que formas possíveis tais estruturas se (re-) estabelecem em textos e paratextos? Em que aspectos tal estruturação pode se tornar sinônimo de enrijecimento de discursos, narrativas, performances, territórios, repertórios e memórias (mas não apenas)? Como avaliar a experiência de escuta dessas canções, hoje, pelas plataformas de streaming, num contexto que beira ou atinge a sinestesia? Apostamos, desse modo, em propostas diversas de trabalhos, capazes de fornecer recortes, métodos e modos de olhar (e de ouvir) tecidos na contemporaneidade, a fim de montarmos nosso “dossiê-patchwork”, diverso desde o conceito.
Referências:
Garret, Filipe, 2020. Relembre a evolução do streamimg de vídeo e música entre 2010 e 2020. Disponível em https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/12/relembre-a-evolucao-do-streaming-de-video-e-musica-entre-2010-e-2020.ghtml.
Genette, G.1997.Paratexts: Thresholds of Interpretation. Cambridge University.
Jost, F. “Qual O Melhor Paradigma Para Se Interpretar Os Gêneros Televisivos?”. Intexto, nº 34, dezembro de 2015, p. 28-45, doi:10.19132/1807-8583201534.28-45.
Machado,A.1997. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas:Papirus
Mata,Jhonatan ; Amato, Marcos V; Amaral, Clara. O videoclipe saiu da TV ou a TV entrou no videoclipe? Performances de um televisor -personagem a serviço da música. In: 17º Encontro Internacional de Música e Mídia <https://www.doity.com.br/anais/17musimid/trabalho/210860
Valente, Heloísa de A. D. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera; FAPESP, 2003.
___________“C’est la romance de Paris, sous le ciel de Paris!”: as formas de mediatização da música e os mecanismos de memória”. XV Congresso da IASPM-AL: “Fronteiras, rotas e horizontes na música popular na América Latina” Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso; Valparaíso, 2023
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